[Resenha] Em Águas Profundas — Patricia Highsmith - Minha Vida Literária
Minha Vida Literária
17

ago
2021

[Resenha] Em Águas Profundas — Patricia Highsmith

Vic e Melinda estão longe de ser um casal feliz ― seu casamento é mantido por um acordo nada convencional: Melinda pode ter quantos amantes quiser contanto que não arraste os dois e a filha para o caos de um divórcio. Tudo parece bem, mas, com o passar do tempo, Vic começa a se incomodar com os homens escolhidos pela esposa e adota uma estratégia inusitada para afugentá-los, assumindo a autoria do assassinato de um deles. Só que a notícia se espalha por toda a cidade do interior dos Estados Unidos e o antes cidadão-modelo, benfeitor, marido mais do que tolerante e empreendedor abnegado vira alvo da maledicência de todos.
Tudo levava a crer que a vida voltaria ao normal quando o verdadeiro assassino é descoberto, mas a revelação da mentira de Vic é o estopim de uma reviravolta nas convicções do próprio e nas relações que mantém com a comunidade, com os amigos e com Melinda e seus vários amantes. O que se cria é uma trama intrincada, repleta de segredos, manipulação psicológica e sangue.
Em águas profundas tem a marca registrada de Patricia Highsmith: explora os abismos mais sombrios da psique humana e lança luz para o fato de que sob a superfície das personalidades mais pacatas e exemplares podem se esconder as mais sórdidas psicopatias.

 

Ficha Técnica

Título: Em águas profundas
Título original: Deep Water
Autor: Patricia Highsmith
Tradução: Roberto Muggiati
Editora: Intrínseca
Número de Páginas: 304
Ano de Publicação: 2020
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Resenha: Em águas profundas

Em águas profundas é o thriller psicológico de Patricia Highsmith. Publicado originalmente em 1954 e relançado no Brasil pela Intrínseca em 2020 com tradução de Roberto Muggiati — a primeira edição foi em 1986 pela Brasiliense, sob o título Águas Profundas —, o romance traz, para além das questões de gênero, a típica questão existencialista encontrada nas obras da autora: a tensão entre individualidade e moralidade. O livro foi também resenhado aqui, por Francine Cândido.

O casamento de Vic e Melinda não é nada convencional: o acordo entre eles é que Melinda pode manter seus casos extraconjugais, desde que não submeta a filha e o marido a um processo de divórcio. Porém, Vic passa a se incomodar com os homens escolhidos pela esposa e, quando um deles é assassinado, adota como estratégia para afugentá-los a admissão da autoria do crime.

Em águas profundas é daqueles livros que geram controvérsias por poder ser lido e interpretado de diferentes maneiras. Estritamente psicológico, traz em suas insinuações e nas entrelinhas de suas camadas as ferramentas para sua chave. Embora a narrativa seja em terceira pessoa e, portanto, haja um grau de distância entre narrativa e personagem, o ponto de vista e o recurso do discurso indireto livre a aproximam dos pensamentos e perspectiva de Vic, de maneira que me senti em sua cabeça desde os primeiros parágrafos. Justamente por se tratar de uma obra psicológica, a estrutura do romance está na complexidade da construção dos personagens, mais do que em ações, de maneira que a leitura pode ser mais vagarosa — e frustrar quem espera a agilidade comum em thrillers embasados mais no enredo e em reviravoltas.

Um ponto importante é que tanto Vic quanto Melinda são figuras nada carismáticas, e trazem por diversas vezes as reflexões morais propostas pela autora. Melinda, em especial, é condenada por seu negligente papel como mãe e por ser detestável com Vic que, em um primeiro plano, tolera seus casos extraconjugais. Porém, foi Vic quem me deixou borbulhando de raiva do começo ao final do livro. Embora não seja diretamente mencionado no romance em momento algum o contexto de sua época, ele não pode ser retirado e ignorado da leitura. Estamos falando de uma obra publicada nos EUA em 1954 sobre uma sociedade branca e classe média, uma sociedade ainda mais patriarcal do que a que temos atualmente, na qual casamento e maternidade eram uma imposição. Pelas menções ao passado de Melinda, o casamento foi uma necessidade para ela, e a maternidade não seria seu caminho, se ela tivesse a possibilidade de escolha. Vic, por sua vez, não se casou por amor, mas por seu prazer em, parafraseando suas palavras, domar o espírito selvagem de Melinda.

Assim, o que Patricia Highsmith faz desde o início de Em águas profundas é sugerir a personalidade manipuladora e narcisista de Vic, que se porta como marido compreensivo aos olhos da sociedade apenas para satisfazer o próprio ego, construindo sua autoimagem de pessoa bondosa e tolerante — imagem essa que se contrasta logo de cara com a atitude do personagem de assumir a autoria de um crime que não cometeu. Afinal, quem faz uma coisa dessas? E o que me gerou uma revolta incontrolável era o quanto essa falsa imagem de Vic era facilmente comprada — de maneira que os borburinhos sobre ele ser um possível assassino se espalham como fofoca, mas ninguém toma atitudes a respeito — e o quanto a de Melinda era condenável, ainda mais se levarmos em conta que seus casos fazem parte de um acordo. Dessa forma, a violência de gênero é expressa com maestria pela autora e se torna ainda mais intensa por acontecer no subtexto do romance, passando para o texto apenas no desenrolar da história. O final de Em águas profundas é a conclusão esperada para tudo que Patricia Highsmith construiu aos poucos, retratando a sociedade cúmplice da violência contra a mulher — só a admitindo quando ela se expressa concretamente.

Talvez a leitura de Em águas profundas seja, para alguns, de cumplicidade, de aproximação com Vic, fazendo com que a temática da moralidade se torne ainda mais evidente. Para outros, pode ser apenas um livro arrastado, sem grandes acontecimentos. Para mim, foi uma obra que cumpriu seu papel ao me despertar tantas sensações revoltantes, de forma que Vic foi um dos personagens que mais detestei nos últimos tempos. Ao final, apesar das compreensíveis sensações angustiantes que o romance desperta, terminei a leitura aplaudindo Patricia Highsmith pelo desenvolvimento de seus personagens e da obra — que, no caso, são praticamente a mesma coisa.





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