Recentemente, li No Escuro, um thriller psicológico perturbador que trata, dentre outros assuntos, da violência contra a mulher e de relacionamentos abusivos.
Coincidentemente, presenciei uma conversa entre duas mulheres no trem enquanto realizava a leitura da obra, o que despertou em mim diversas reflexões ligadas aos diferentes tipos de violência que acometem as mulheres.
Após a leitura de Delírio, de Lauren Oliver, fiz um post com minhas reflexões e o chamei de Delírios Após “Delírio”. Tive uma boa resposta dos leitores e, alguns, me pediram para “delirar” mais vezes.
Próximas de mim, duas amigas – mulheres na faixa de seus 40 anos – conversavam e, em determinado momento, passaram a falar sobre empregos e as dificuldades econômicas enfrentadas pela população brasileira. Falaram, então, sobre uma amiga empresária, dona de uma loja, e sua atual decisão: a de parar de contratar mulheres. Segundo elas, os motivos para isso seriam: homens não fazem “corpo mole” no trabalho e, se necessário, fazem o trabalho pesado, como o de carregar caixas, além de “não ficarem fazendo fofoca e intriguinhas”; não faltam por “qualquer besteira” (palavras delas), e o exemplo de um motivo de falta dado por elas foi o cuidado aos filhos; e, por último, não é necessário pagar licença maternidade aos homens. Sendo assim, elas concordaram com a sábia decisão de que essa, além de eficiente, é também bastante econômica, e que infelizmente é preciso tomar medidas assim atualmente. “É assim que tem que ser.”
Foi impossível não me sentir revoltada. Já seria infinitamente triste ouvir isso da boca de um homem sobre a decisão de outro homem, mas envolver mulheres tornou tudo ainda pior, e mais urgente, para mim, a necessidade da criação de mais debates e de reflexões sobre nossa sociedade culturalmente machista e a importância do feminismo. Assim, decidi fazer esse post, compartilhando com vocês as reflexões despertadas por essa conversa que ouvi.
Em primeiro lugar, associar “fofoca” e “corpo mole” ao comportamento feminino, além de sexista, é completamente errôneo. Ser fofoqueiro ou preguiçoso não é uma questão de gênero, e sim características individuais que podem ou não pertencer a qualquer pessoa, sem que seja possível fazer uma generalização como essa. Só para ilustrar, darei um exemplo pessoal. Depois de me formar em Nutrição, trabalhei por um ano e meio na parte administrativa de uma escola, na unidade de Educação Infantil. A equipe era predominantemente formada por mulheres, sendo apenas dois funcionários homens. Quando comecei a namorar, levei um tempo para contar para minhas colegas que eu estava saindo com alguém. Porém, quando resolvi compartilhar com elas, elas já sabiam. Sabiam, inclusive, detalhes como meu namorado abrir a porta do carro pra mim, beijar minha mão, e coisas do tipo, porque a “rádio patrulha” do colégio, ou seja, os dois homens, já haviam visto e compartilhado com as demais funcionárias. E essa foi apenas uma das situações de fofocas, não veiculadas por mulher alguma. Vale dizer, também, que perdi as contas das vezes em que houve reclamações justamente sobre esses dois homens não estarem fazendo o trabalho direito, sobre estarem, precisamente, “fazendo corpo mole”, enquanto a maioria das mulheres daquela unidade trabalhava com afinco.
Preocupante, também, é problematizar a questão da força física. Por questões físicas e biológicas, homens – na maioria dos casos – são mais fortes do que as mulheres. Esse é um fato, não um problema, e ainda assim existem exceções.
A segunda questão – a das faltas, principalmente se ligadas aos filhos – é uma das mais relevantes. Novamente, associar que um número maior de faltas “por qualquer besteira” acontece com as mulheres é absurdo, aleatório e completamente vago. Porém, se falarmos que mulheres faltam mais no serviço por conta de seus filhos, serei tristemente obrigada a concordar – tristemente não por dar razão à dona da loja, mas pelas questões envolvidas nesse fato.
Ainda é dado à mulher o papel de cuidar de seus filhos, quando essa deveria ser uma tarefa igualmente divida entre pais e mães. É responsabilidade da mãe cuidar da criança quando ela adoece. É responsabilidade da mãe frequentar uma reunião de “PAIS e mestres”. É responsabilidade da mãe qualquer coisa ligada ao filho. Se um pai assume essas tarefas, ele “ajuda” a mãe. Não deve ser assim. Qualquer tarefa doméstica ou relacionada à criação dos filhos feita por um pai não pode e não deve ser vista como “ajuda”, porque são de responsabilidade dele tanto quanto são da mulher. Isso falando em divisão de tarefas. Se por um acaso um casal concordar, por exemplo, em que a mulher não trabalhe fora para assumir essas tarefas, tudo bem, desde que seja uma escolha e uma preferência da mulher, não porque só caiba a ela fazer isso. Um homem pode, igualmente, ser aquele que ficará em casa, enquanto a mulher é quem sai para trabalhar.
Mas, até agora, falei apenas dos casos em que há um pai cuidando da criança ao lado da mãe. Uma situação extremamente comum é que a mulher seja mãe solteira, e aí só caberá a ela cuidar de seu filho. Entre o filho e faltar no trabalho, adivinha qual será a escolha dela? Aqui, entramos em mais uma questão. Quando uma mulher engravida no Brasil, mesmo que contra sua vontade, a decisão de ser mãe já foi tomada por ela, visto que o aborto não é legalizado. Um homem, por sua vez, pode escolher ser pai, porque nada o impede de abandonar a mulher que ele engravidou, podendo facilmente não assumir seu próprio filho.
Sempre fui contra o aborto e continuo acreditando que eu jamais seria capaz de abortar. Para mim, há vida desde a concepção, e eu não conseguiria viver tranquilamente com minha consciência sabendo que cometi um aborto. Porém, digo isso porque, por mais difícil que fosse lidar com uma gravidez indesejada, tenho absoluta certeza de que eu teria o apoio emocional e financeiro da minha família e do meu namorado. Quem sou eu para ser contra o aborto no caso de pessoas que vivem realidades completamente opostas à minha? Quem sou eu para ser contra algo simplesmente por uma crença pessoal? Se o aborto for legalizado e eu for contra, basta que eu não o faça, não cabe a mim julgar ou decidir por qualquer outra pessoa que não eu mesma. Também, se sou a favor da vida, não posso me esquecer da vida pré-existente à concebida: a da própria mulher em questão, já que muitas não sobrevivem à forma de como o aborto se dá no Brasil.
Ainda, legalizar o aborto não é o mesmo que incentivá-lo, mas sim dar bases para que ele seja corretamente realizado, com o apoio necessário às mulheres que por ele optarem e/ou que dele precisarem, inclusive com acompanhamento psicológico antes e após o procedimento – ingenuidade (para não dizer “idiotice”) acreditar que ele não traz nenhum tipo de impacto psicológico/emocional na mulher. A legalização do aborto é uma questão de saúde pública, acima de tudo, e há diversos estudos apontando para todas as melhorias observadas em vários países que o legalizaram, inclusive na diminuição da criminalidade anos após tal aprovação e no próprio índice de abortos realizados nesses países. A partir do momento em que ele é legalizado, torna-se possível discuti-li mais abertamente, bem como discutir outras opções que não o incluem, possibilitando às mulheres pensarem com mais clareza e segurança sobre a questão.
Vale ressaltar, também, que abortos acontecem independentemente de serem ou não legalizados e, enquanto mulheres de maior aquisição financeira são capazes de realizá-los com segurança simplesmente por poderem pagar por eles, a maior parte das mulheres que abortam é pobre e precisa se submeter a clínicas clandestinas e a métodos arriscados, que colocam em risco sua própria vida. Seria fácil dizer “simples, então não abortem”, mas isso seria o mesmo que ignorar os motivos que levam uma mulher a desejar o aborto. Debater sobre gênero é também levar em conta a questão das classes no Brasil, e fechar os olhos para todos esses fatos seria, no mínimo, estupidez da minha parte, além de uma ignorância injustificada: as informações sobre o assunto estão todas aí, basta apenas lê-las.
Por fim, e tão problemática quanto a questão anterior, é a licença maternidade como motivo para uma não contratação de mulheres. Esse é um retrocesso gigantesco, uma ofensa completa aos direitos femininos tão arduamente conquistados. É um conceito tão absurdo quanto a defesa da ideia de que é justo que homens tenham salários maiores do que as mulheres já que não recebem licença maternidade. Aliás, só para lembrar, as mulheres, exercendo os mesmos cargos e cumprindo as mesmas funções, recebem menos do que os homens, um fato estatisticamente comprovado, simplesmente por serem mulheres. Dessa maneira, o fato de ter sido proferido por mulheres sobre a decisão de uma terceira mulher torna ainda mais gritante toda a problemática: as três mulheres em questão são tão vítimas da sociedade, infelizmente, machista, opressora e patriarcal na qual vivemos que não são capazes de compreenderem que também sofrem com o sistema operante. É por isso que as discussões de gênero são fundamentais desde a formação das crianças, desde pequenas, e deve ser incentivado nas escolas e fora delas. E não, isso não é uma espécie de doutrinação.
Só para resumir: vamos imaginar uma mulher que não tome anticoncepcional, ou porque optou por não tomá-lo, tendo em vista seus muitos malefícios, cada vez mais amplamente divulgados, ou por qualquer outro motivo possível. Vamos imaginar uma situação de sexo casual e consensual (porque falar de estupro seria outro assunto), no qual ou o preservativo utilizado pelo homem estourou, ou o homem não quis utilizá-lo (muitos alegam desconforto ou simplesmente não gostam de usá-lo. Cada vez mais, desde o surgimento da pílula, tem sido imposto à mulher o uso do contraceptivo, ainda que tomar anticoncepcional não previna a contração de qualquer DST), e a mulher, desconfortável em contrariá-lo (o que é bem comum), acaba aceitando que ele não utilize. Ou, simplesmente, não havia um preservativo. Por qualquer motivo, ela não toma a pílula do dia seguinte (outro potencial malefício à saúde feminina, quando indevidamente ingerido). Ela acaba engravidando. Ele não quer assumir a criança e desaparece. Ela tem que lidar com uma gravidez indesejada, uma potencial rejeição da família (dependendo de suas condições) e julgamentos do tipo “Como VOCÊ não se cuidou?” (porque, nessa hora, a culpa é dela) ou “Que vadia”, por ter feito sexo casual. Se ela já vive dificuldades financeiras e está desempregada, grávida é que ela dificilmente encontrará emprego; que empregador contratará alguém que terá que sair de licença maternidade? Se ela já trabalha, pode vir a encontrar dificuldades em seu serviço, já que sua gravidez pode ser vista como um empecilho ao empregador naquele momento. Depois da criança ter nascido (e pulando uma série de outros problemas que podem existir) e ter completado quatro meses, essa mãe retorna ao seu trabalho, já tendo, possivelmente, se preocupado em ter que resolver problemas como quem poderia cuidar da criança (Avós? Outros parentes? Alguma creche?). A partir daí, qualquer assunto envolvendo seu filho afetará diretamente sua vida, inclusive seu trabalho. Se seu filho acaba tendo problemas de saúde, sendo necessário que ela falte repetidas vezes no trabalho, segundo à visão da dona da loja, é melhor despedi-la, aumentando ainda mais a carga de problemas dessa mulher, que agora, além de tudo, não terá como prover seu próprio sustento e o de seu filho. Essa mulher, tão responsável quanto seu parceiro durante a concepção (ou ainda menos responsável do que ele), não teve opção sobre sua gravidez (diferentemente do parceiro), foi culpabilizada por ter engravido, precisou arcar com todos os problemas sozinha, teve sua vida por completo modificada e, no que diz respeito aos seus direitos trabalhistas, ainda é vista como “empecilho” ou “gasto financeiro” para a empresa.
Assim, não vamos discutir sobre os papeis atribuídos à mulher na sociedade. Não vamos discutir seus direitos (ou a falta deles). Não vamos discutir todas as dificuldades enfrentadas por mulheres e que não acometem os homens. Não vamos, sequer, nos colocar na posição de alguém que enfrente ainda mais problemas do que nós já enfrentamos por conta de diferenças socioeconômicas. Não. Vamos ignorar tudo isso e vamos inferiorizar a mulher, mesmo sendo mulheres, sem termos noção de que falamos de nós mesmas, e vamos continuar contratando mais homens e pagando salários maiores a eles. É mais fácil, mais econômico e requer muito menos reflexões.
A violência contra a mulher não é apenas a enfrentada por Catherine, protagonista de No Escuro. A violência contra a mulher se faz no dia a dia, a cada vez que um direito dela é ignorado, subestimado, desrespeitado e violado, porque isso é o mesmo que ignorá-la, subestimá-la, desrespeitá-la e violá-la. Se você ainda acha que o feminismo não é necessário ou que ser feminista é exagerado (sem contar o pejorativo “feminazi” tão frequente por aí), você certamente ainda não entendeu esse gravíssimo problema histórico-cultural enfrentado pelo sexo feminimo. Se você é mulher e pensa assim, o problema é ainda mais alarmante: você nem ao menos está consciente de seus próprios direitos e das agressões que sofre, diariamente, simplesmente por ser mulher.
*Observação: Esse post foi escrito antes da prova do ENEM/2015, que trouxe o “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira” como tema da redação. Achei pertinente, contudo, utilizar parte do tema como título do post, considerando sua relevância em nosso contexto atual.
Que linda matéria…não poderia deixar de comentar!
Eu acho que um dos principais papeis dos livros e blogs literários é tratar de temas sérios.
Algumas obras trazem isso de maneira real (como o caso de Malala no tema violência doméstica) outros de maneira mais leve (como Cheio de Charme também nesse mesmo assunto), mas qualquer abordagem é válida.
Sou uma feminista de alma e coração. Acredito que a mulher deve ser independente, forte e livre. Não digo que somos melhores que os homens em nada, mas acredito na equiparação entre os gêneros, cada um com suas peculiaridades, mas com os mesmos direitos enquanto pessoas.
Você tocou em temas forte e polêmicos sem medo, como o aborto, por exemplo. E eu não poderia estar mais feliz com isso. Quantas mulheres morrem em clinicas clandestinas em prol de uma fachada machista que acredita que coibir a prática do aborto irá impedir aquelas que realmente desejam realizá-lo. Não é questão de ser “a favor”, mas de encarar a realidade.
Amei, parabéns! Me senti representada enquanto mulher com suas palavras Mi!
Mil beijos